O Brasil vai cair no abismo?
Muitos de nós vivenciamos o regime militar. Importante lembrar que foi um golpe de Estado, no sentido de destituir um presidente que exercia o poder de forma legítima, com respeito ao Congresso e ao Judiciário (apesar das dificuldades políticas e paralisia decisória). O movimento que levou ao regime de 1964 foi progressivamente se radicalizando, “devorando” os liberais (que se agrupavam na antiga UDN) e muitos dos conservadores do antigo PSD, culminando no regime de exceção do AI-5 de dezembro de 1968, cujo objetivo imediato era esmagar a oposição civil plasmada na Frente Ampla.
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A partir de então, o regime muda de feição, assim como seus métodos, com violações sistemáticas dos direitos fundamentais. A oposição se fragmenta, alguns empunham armas, mas a maioria enxerga apenas desespero nessa alternativa. O regime obtém uma legitimidade estreita alicerçada no “milagre” econômico (1968-1973), mas a oposição agrupada no MDB consegue se recompor e vence as eleições de 1974. A saída foi uma abertura “lenta, gradual e segura”, ameaçada nos idos de 1977 por uma tentativa encabeçada pelo então ministro do Exército e elementos mais radicais da caserna de um golpe dentro do golpe. Não fosse frustrada, teríamos um banho de sangue.
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Por que essa longa introdução? Cinco generais se sucederam no poder, além da junta que governou com a doença do general Costa e Silva. Nenhum se caracterizou por culto à personalidade. Tínhamos, sim, um regime de força; não tínhamos uma autocracia, o governo do “homem forte” com poder ilimitado, muito menos de um “mito”. Ao final de um mandato, ia-se para casa. Havia um elemento não só de impessoalidade, mas de institucionalidade no regime.
Talvez pela primeira vez o país abra as portas não apenas a um governo iliberal, mas a um governante que ambiciona poder incontrastável: manda quem pode; obedece quem tem juízo. Não enxergo um Congresso que queira oferecer resistência a propostas que enfraqueçam o regime democrático, ao sistema de freios e contrapesos.
Alguns não o farão por lealdade absoluta, até porque “traições” custam eleições. Outros porque creem que o país necessite de um governo forte, que levará adiante um ideário dito conservador a qualquer custo. Talvez a maioria porque enxerga a política como acesso e controle de recursos do Estado; e apoiando o Executivo serão premiados. Haverá oposição; mas será silenciada no voto, por minoritária.
Sem resistência do Congresso, ampliar o número de ministros do STF, enfraquecer as instituições, avançar numa agenda que culmine na possibilidade de reeleições sucessivas é o mais provável. Reeleito com forte apoio de amplas camadas da população, com controle do Congresso e dos tribunais superiores, mas sem necessariamente colocar na ilegalidade partidos políticos ou censurar a mídia tradicional, o sistema político operará o país no limbo de uma autocracia. Talvez não muito diferente da Hungria, mas sem uma União Europeia como contrapeso jurisdicional. Talvez um pouco mais violento, se a oposição se insurgir nas ruas. E certamente mais isolado internacionalmente, “pária” sem orgulho. Nada disso está ainda escrito.
Nunca o voto foi tão importante. Certamente, nunca na minha geração.
*Cláudio Frischtak é economista